Abebe Bikila foi tudo.
Filho de um pastor de ovelhas do interior da Etiópia e capitão da guarda real do imperador Hailé Selassié.
Foi herói no seu país após a vitória nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960.
Foi o primeiro africano negro a ganhar uma medalha de ouro nos JO (em 1960) e seria também o primeiro bicampeão olímpico da maratona, vencendo os JO seguintes em Tóquio.
Mas também foi vilão (segundo o imperador) escapando in extremis à pena de morte devido à clemência de Selassié, perdoando-lhe não ter participado no golpe militar de 1960 (diz-se que o perdão se deveu a ser campeão olímpico).
Foi ainda mau condutor e um acidente de carro (quando conduzia sob o efeito do álcool) atirou-o para uma cadeira de rodas aos 37 anos. Morreria aos 41 anos com uma hemorragia cerebral em 1973, uma complicação neurológica devido ao despiste que tivera 4 anos antes.
Biratu, o melhor
Antes de Abebe Bikila houve Wami Biratu.
Biratu era o melhor corredor de longa distância da Etiópia no final da década de 1950, mas nunca chegaria a conhecer a glória, muito menos a glória mundial de Bikila.
Biratu perdeu a hipótese de participar nos Jogos Olímpicos por três vezes:
- em 1956 perdeu o seu lugar depois de desertar do exército falhando a participação nos Jogos da Austrália
- em 1960 o sonho terminou quando ficou gravemente doente (ou lesionado durante um jogo de futebol, as versões divergem) pouco antes dos Jogos de Roma
- em 1964 Selassié aprovou um corte no orçamento dos atletas e Biratu ficou novamente de fora dos Jogos de Tóquio
Mesmo assim nunca perdeu a sua paixão pela corrida (podemos vê-lo correr aos 95 anos no documentário produzido por Miguel Llanso “O segundo melhor”) e é considerado hoje pela maioria dos analistas desportivos como um elemento-chave da história do atletismo etíope e africano.
Foi ele o homem por trás do fenómeno Abebe Bikila.
Adidas não, obrigado
Em 1960, quando surgiu a hipótese de Biratu ir aos Jogos de Roma (já tinha falhado os Jogos anteriores e seria Bashay Feleke e Mamo Wolde, que não ganharam, a tornar-se os primeiros etíopes a participar numa olimpíada), uma doença – existe a versão de fratura no tornozelo durante uma partida de futebol – voltou a fechar-lhe a porta.
Porta essa que se abriu a Abebe Bikila.
Sem Biratu à última hora, a escolha recaiu naquele que conseguia acompanhar o seu ritmo nos longos e dificílimos treinos: Bikila.
https://twitter.com/juegosolimpicos/status/1304028257633865730
Chegado a Roma, Abebe Bikila não tinha ténis para correr e a Adidas, patrocinadora oficial dos Jogos Olímpicos, tinha poucos pares para o atleta escolher: o etíope não gostou de nenhuns e optou por correr descalço – da mesma maneira que treinava na Etiópia.
Ouro e recorde para Bikila
Bikila não só venceu a Maratona, como bateu o recorde mundial da prova.
Correu os 42 quilómetros em pouco mais de 2h15 (2h15m16,2s).
«Corri descalço para mostrar ao mundo que vencemos na Etiópia com heroísmo e determinação»
Os jornais italianos escreveram: “Foram necessários milhares de soldados italianos para invadir a Etiópia, mas apenas um soldado etíope para conquistar Roma”, referindo-se à invasão do país por Mussolini em 1935.
De volta ao país, Bikila foi promovido a cabo do exército e ganhou uma condecoração do imperador Hailé Selassié, a primeira de muitas ao longo da sua curta vida.
